Em junho, comecei a escrever um texto sobre corrida, depois de ler Do que eu falo quando falo de corrida, de Haruki Murakami (uma indicação que peguei na newsletter da Vivi, que já mencionei aqui).
Como você pode imaginar, o livro fala sobre corrida — ou melhor, sobre a relação do escritor com o esporte, que obviamente vai muito além da questão aeróbica. Para mim, foi particularmente interessante, pois não fazia ideia de que Murakami era um corredor assíduo, e muito menos um maratonista. Aliás, até os 29 anos ele não fazia ideia de que escreveria profissionalmente nem seria publicado, e até os 33 anos, era dono de um bar de jazz em Tóquio, quando começou a correr para se manter saudável diante da rotina exaustiva.
“Trinta e três anos — essa era a minha idade na época. Ainda jovem o bastante, embora não mais um homem jovem. A idade com que Jesus Cristo morreu. A idade com que Scott Fitzgerald começou a decair. Essa idade talvez seja um tipo de encruzilhada na vida. Foi nessa idade que comecei minha vida de corredor, e foi meu tardio, embora verdadeiro, ponto de partida como romancista.”
Recentemente, comecei a correr, como provavelmente muitas pessoas na sua bolha também. Depois de ler a newsletter da Vivi, comecei a refletir sobre por que, nesta altura da vida, resolvi testar um esporte no qual já sabia que era ruim. Alguns dirão que é justamente por isso, mas eu não sou esse tipo de pessoa. Infelizmente, me identifico mais com aquele grupo tedioso de humanos que, uma vez encontrando algo confortável e que funciona, se mantém nele por bastante tempo sem grandes crises.
No texto que estava escrevendo, tentei explorar minha relação com esportes ao longo da vida, que, para resumir, foi nula. Não que nunca tenha praticado; por estímulo (ou obrigação) dos meus pais, eu e meus irmãos tentamos várias atividades na juventude (natação, remo, ginástica olímpica...), e embora eu tenha minhas suspeitas sobre o porquê de nunca ter desenvolvido uma paixão, a verdade é que, em nossa casa, o esporte sempre foi apresentado de uma maneira tensa, como algo para emagrecer, e mesmo quando não era assim, automaticamente virava uma questão de competição.
Na atividade que mais gostei, a natação, acabei sendo colocada na mesma turma que meu irmão do meio. Nós éramos bons — ele melhor — e nosso professor achou por bem me estimular a competir com ele para que ambos fôssemos para a equipe. Tudo nessa ideia me irritou. Fazer algo que eu gostava de forma mais dedicada e competir com meu irmão era um grande não para minha mente pré-adolescente, e isso ajudou a sedimentar a ideia de que o esporte não era para mim. Ao longo da vida, só repensei isso quando me vi de certa forma obrigada, por questões estéticas e/ou de saúde (mas vamos combinar que muito mais pela estética). Mas em todos os casos, porém, nunca associei atividade física ao prazer ou ao desenvolvimento de habilidades.
Há uns quatro meses, minha mãe perdeu o ar. Ela, que sempre teve uma ansiedade cortante, que sufocava sua forma de falar e de existir no mundo, associada, claro, aos seus dois maços de cigarros fumados religiosamente todos os dias durante 30, 35 anos, uma noite se viu sem conseguir respirar e foi parar na emergência. Depois de um tempo de internação e da suspeita de possivelmente ter que ficar refém de um balão de oxigênio pelo resto da vida, teve alta, com a sentença dos médicos: "Você já fumou todos os cigarros que podia nesta vida."
Ela parou de fumar, e eu comecei a correr. Só me dei conta disso quando parei para pensar neste texto e percebi que foi na mesma época que comecei uma consultoria de corrida.
A corrida, para mim, é um desaforo. Para você ter uma ideia, penso tanto em desistir antes mesmo de começar qualquer corrida proposta que sempre levo meu cartão de transporte comigo quando saio para correr. Ainda não aconteceu, mas sempre me preparo para dar meia-volta e voltar para casa. Outro aspecto é que, embora haja uma evolução visível, ainda me considero ruim na corrida. Sei que muitos refletirão sobre o que significa ser ruim, mas, na minha concepção, é que é sempre um sofrimento. Não consigo também evoluir muito na velocidade (nem tenho muita empolgação para isso), e nem me vejo falando sobre a corrida com o brilho nos olhos que vejo por aí. Então, por que continuar?
Pra mim, é porque a corrida tem início e fim específicos. Não precisa de muitos aparatos, e geralmente é mais difícil no início da atividade. Tem outro fator que é me obrigar a voltar constantemente ao foco mental do que estou fazendo está fazendo. Se tergiverso mentalmente mesmo que por pouco tempo durante a corrida, fica impossível para mim, manter qualquer ritmo. E nesses momentos, para mim que sempre desiste dos processos em geral e tem dificuldade em suportar o desconforto, acabo pensando enquanto corro nas mesmas palavras que dizia ao meu filho quando ele começou a andar e cada passo parecia mesmo um grande avanço para a humanidade: um pé, outro pé.
Eu nunca me comprometo com todos os passos, apenas com o próximo. E como tenho meu cartão de transporte no bolso, garanto que, em caso de desistência, posso voltar sem grandes investimentos. A corrida se tornou, como também disse Murakami, tanto um exercício quanto uma metáfora para a vida — para as tantas atividades que não quero fazer, para as que quero mas sei que preciso de dedicação, e também para os meus momentos sozinha, tão desejados e tão escassos depois da maternidade, que parecem se justificar mais quando digo que vou correr do que se dissesse que preciso ficar em silêncio sozinha por uma hora.
Esses dias ouvi minha treinadora dizendo que com a corrida ela desenvolveu a capacidade para além da estética. E que embora ela talvez ficasse mais em forma (ou padrão) apenas malhando, na corrida isso deixou de ter tanta importância, porque ela começou a ser capaz de fazer coisas antes inimaginadas, como correr maratonas.
Sim, é uma seita. Mas passei a entender perfeitamente a mentalidade, mesmo sem correr maratonas e mesmo sabendo que talvez, num futuro próximo, eu tenha outro hiperfoco, é mesmo algo bonito conseguir abrir espaço mental para se ver e agir de formas inimaginadas.
No livro de Murakami, uma das minhas partes favoritas é quando ele comenta das “meninas de Harvard”. Ele estava em Cambridge e, ao fim de um processo de treinamento para uma maratona, se vê constantemente ultrapassado por meninas calouras da faculdade: `a maioria é pequena, magra, com cabelo loiro preso em um rabo de cavalo e iPods novinhos em folha, correndo como o vento. Pode-se definitivamente sentir uma espécie de ar desafiador e agressivo emanando delas. Parecem estar acostumadas a ultrapassar as pessoas e, provavelmente, não costumam ser ultrapassadas. Comparado a elas, estou bem acostumado a perder`.
Ele faz uma reflexão bonita sobre geração e momento de vida: aquelas garotas têm seu próprio ritmo e seu próprio senso de tempo como calouras de Harvard, e ele, como jovem senhor com sua própria história de vida até ali, tem seu próprio ritmo e senso de tempo, que são completamente diferentes. E é assim que deve ser. Como com quase tudo, na corrida, na escrita, na vida, parece que o segredo é confiar que atos aparentemente ineficientes, como um passo após o outro, possam, a longo prazo, mostrar algo de valor. Ao superar o desconforto, talvez a gente alcance mesmo alguma consciência ou fluidez, e nosso ritmo de estarmos por aqui vivos.
Bom, pelo menos é disso que eu estou falando quando falo de corrida.
você pode achar que não, mas o brilho dos seus olhos transborda nesse texto que é sobre corrida e muito mais.
tenho uma relação com a corrida muito parecida com a sua. não é meu esporte preferido, algo que faço com muita vontade, mas é um exercício prático, fácil de encaixar na rotina. há dias em que sofri um pouco mais no percurso; noutros, aproveito melhor a “jornada”. como metáfora da vida, funciona: não é todo dia que é o nosso melhor.