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Em março de 2021 comecei a trabalhar como garçonete em um restaurante argentino em Singapura. Na época o gerente me contou na entrevista que o chef estava empenhado em conseguir uma estrela Michelin, e o que afastava disso era principalmente a sua dificuldade em manter uma equipe, ou mais ainda, uma que permanecesse comprometida no serviço.
O porque da dificuldade eu soube assim que fui contratada. O ambiente era um caldeirão e o chef preenchia todos os resquisitos do imaginário clichê de um chef - principalmente um chef francês: metódico, rígido, vivendo um mito de gênio infeliz confinado em um ambiente de pura pressão, sempre priorizando a precisão na execução dos pratos, onde absolutamente tudo tinha seu lugar ideal. Não é que ele não conseguia manter a equipe, ele se esforçava para que todos os dias o ambiente de trabalho fosse um campo minado. Dos 7 meses que fiquei lá, o staff mudou pelo menos 7 vezes.
Teve esse dia que a batedeira quebrou - todo dia tinha algum equipamento caríssimo dando algum problema, e a batedeira então, era 10/10 -, e ele saiu alucinado no meio do serviço, gritando, se bateu comigo, e disse “Maria, eu só queria que um dia, apenas um dia, as coisas funcionassem como deveriam”. Na hora pensei o quanto isso era contraditório na ordem da vida, mas não falei nada, apenas assenti como me parecia o correto e segui.
Em uma outra ocasião ele e o gerente de bar - que não se bicavam - discutiram tanto, que se trancaram nos fundos onde se lavava a louça e lá ficaram por quase 1 hora. Era noite de sábado e lembro - com frio na espinha - das boletinhas saindo da máquina de pedidos com “fire main”, “fire starter”, “fire desert”, os clientes pedindo drinks que não vinham, uma pilha de louças que não tínhamos onde colocar e um gerente que sequer conseguiu entrar onde eles estavam pra entender se eles haviam se estragulado. Todo dia tinha a mesma ordem do dia, e todo dia era diferente.
Trabalhava 30 horas por semana, o que não era muito, mas como me escalavam majoritariamente para os dias de casa cheia, na prática significava que eu trabalhava 10 horas por dia, três vezes na semana. Era alucinante. Eu nunca fiz tanta coisa ao mesmo tempo em um ritmo tão intenso - e tenso, fingindo leveza de espírito e precisão. Àquilo me enervava, me angustiava, eu detestava - e estava completamente viciada. Quando a casa estava reservada do primeiro ao último horário, e o expediente acabava 23h (na época da pandemia, Singapura só vendia bebida até 22h e 23h os restaurantes fechavam), um espírito adolescente baddass tomava conta de mim e eu ia ferver os talheres pra depois polir ouvindo AC/DC como se tivesse completado uma maratona.
Um tanto ridícula né, eu sei. Mas hoje entendo perfeitamente a realização do Richie - pós estágio - no episódio 7 da série. Na época meu marido não entendia como eu podia falar tão mal de um trabalho todos os dias, e ainda assim me importar tanto com ele. Mas era como era, e apesar de eu ter feito contagem regressiva para a chegada do meu último dia trabalhando lá, ao mesmo tempo carrego alguma nostalgia daqueles dias.
Sei lá, ali tinha algo especial, um espírito de coletividade arruinada e caótica - porém comprometida, que me encantava. Li depois em algum lugar que muitas vezes na rotina de um restaurante - seja como chef ou atendimento - a dinâmica acaba sendo tão viciante porque é uma forma de você, ainda que por algumas horas, esquecer completamente o mundo exterior e sua vida só existir ali com àquelas pessoas e àqueles dramas, sendo sua missão apenas terminar o serviço.
Assim que terminei de assistir a segunda temporada de The Bear fui pesquisar mais sobre, e encontrei certa unanimidade quanto ao caráter realista em retratar as cozinhas profissionais e o quanto do equilíbrio de drama com comédia fez com que a série tenha alcançado tamanho frenesi. Li que o diretor reuniu dezenas de relatos de cozinheiros - incluindo um dos seus melhores amigos, dono do Mr Beef original em Chicago - Chris Zucchero, para conseguir retratar a rotina do ambiente exaustivo da cozinha, assim como assistiu vários filmes que se passavam em submarinos para entender como é a dinâmica de pessoas confinadas sob pressão.
Também fiquei encantada com o pequeno artigo do editor-chefe da Eater Chicago, Ashok Selvann e dei muita risada da tirinha inquestionável da “The New Yorker”, mas foi uma segunda resenha que encontrei, que trazia no título "felicidade e pânico", que comecei a entender o porque, além da hipnotizante rotina de uma cozinha profissional, fiquei tão tocada com a 2ª temporada.
A verdade é que a série fala sobre relacionamentos humanos, então além de ter lembrado da minha experiência como garçonete, lembrei muito da minha própria família. Em alguns episódios e dinâmicas dos personagens descritas na série, em especial o já icônico episódio 6, “Peixes”, sobre a festa dos sete peixes da família Berzatto, não pude evitar ser invadida por muitos flashes do meu passado muitas vezes enérgico em família.
Me vieram cenas da minha avó levantando os copos com tapas fortes na mesa em ocasiões familiares, do meu pai entornando uma garrafa de mate na minha mãe durante um almoço, dela e meus irmãos (e eu, claro) fingindo dormir enquando meu tio começava a falar, de oficiais de justiça aparatando na nossa casa, entre outros momentos dessa constante tensão em família, como quando minha mãe me enviou uma mensagem avisando que minha avó havia se cortado intencionalmente e anexava na mensagem fotos de diversos cômodos da casa com sangue.
Essa última lembrança em especial, me veio quando no 3º episódio, em uma sessão de grupo Carmy fala:
“Acho que quando eu era criança, qualquer coisa que me causasse algum tipo de empolgação, diversão ou riso sempre acabava sendo arruinada. Não acho que minha família quisesse arruinar as coisas, não acho que faziam de propósito mas, às vezes, eles forçavam à barra. Às preciso me lembrar de respirar fundo, preciso me lembrar de estar presente, sabe? E de que o o céu não está caindo e de que não vai acontecer o pior, o que é muito difícil porque sempre vai acontecer o pior”.
Nada que vivi equivale ao narrado no episódio e nem é a intenção, mas - e me perdoem o uso desta palavra em outubro de 2023 - a potência em ver imagens da nossa capacidade de afetar o outro, transformar e perdurar descrita nas entrelinhas das dinâmicas - e outras nem tanto nas entrelinhas assim, me contorceu de forma chorosa no sofá enquanto assistia.
Tem muito de divertido - claro, todo mundo ama uma ode à uma boa orgia emocional italiana, mas que asfixia imaginar a construção desses indivíduos forjados nesse ambiente. Me lembrou uma observação da Noemi Jaffe em uma aula sobre estilo literário quando ela falou sobre Saramago e sua não utilização de vírgulas intencionais pra promover a sensação no leitor de asfixia. Pois bem, The Bear foi pra mim como uma narrativa saramaguiana asfixiante e arrebatadora.
A construção dos personagens, a trilha sonora, o uso de um casting estelar aplicado em situações tão delicadas e singulares, o caminho particular de cada personagem sendo destrinchado ao longo de episódios sutis, porém transformadores, vão dando corpo para que no fim, no clímax, o episódio final não pudesse ser nada diferente de um dia de estreia em um restaurante com a casa cheia. Pra quem está de fora parece um sucesso, mas são nas lacunas que conhecemos a situação real.
Li em uma matéria da Esquire que dentre tudo o que a série poderia ser, o diretor preferia vê-la como “um método de processar histórias de perdas, estranhamentos, traumas, vícios e comida da sua própria vida”, e essa parte final me ganha, porque o que é comer muitas vezes, senão processar uma memória? O que é cozinhar para alguém senão processar uma história através dos ingredientes? Ele conta que fez questão de colocar na série uma comida que ele e a irmã cresceram comendo - braciole, porque:
“Éramos um bando de disfuncionais, e era estranho. Ela morou com a nossa mãe por um tempo, e eu vivi com meu pai por um tempo, e existia um certo estranhamento ainda que a gente amasse uns aos outros, e a comida era o que nos trazia de volta,… braciole era essa coisa de domingo em família”.
No fim penso que a série é sobre isso, sobre o estranhamento desses personagens entre eles e dentro deles, e de como se ver com esse estranhamento enquanto constroem algo novo, sem perder “essa coisa de domingo em família” que os une.
Na série o novo é o The Bear, que tem uma história e uma carcaça um tanto comprometida, mas com pessoas que acreditam - pelo menos na maior parte do tempo - em criar algo original. Mas na vida vejo como uma analogia pra abandonar um pouco a ideia rígida que cada um faz de si, pra dar espaço à algo autoral. Por isso Sidney e Carmy soam tão descompassados quando estão testando um cardápio inédito, porque abandonar um caminho conhecido é complexo e profundo, mas às vezes é a única forma de você soar como você mesmo.
Como aquela letra conhecida do Leonard Cohen diz, que aliás foi inspirada no misticismo cabalístico que prega a aceitação da imperfeição: “esqueça sua oferta perfeita, existe uma falha em tudo, é assim que a luz entra”.
Texto maravilhoso, como sempre.
é demais ler seus textos e entrar na sua realidade! ❤️
(ansiosa por uma série das suas vivências, como marca a netflix aqui?)