Estou sentada no banco de trás do carro, meu filho dorme, meu marido pede pra colocar The Black Crowes para tocar, e faltando 49 minutos para voltarmos das férias em Garopaba, termino de ler Afetos Ferozes, da Vivian Gornick.
Escrevi essas primeiras linhas no domingo passado. Lembrei agora que comprei o livro no dia que voaríamos para Porto Alegre, primeira parada do recesso de fim de ano, já na beira do horário de embarcar. Mesmo com a praticidade do kindle, queria me sentir comprando um “livro para as férias”. Algo que ficasse marcado pelos dias de sol, água e sal - e caso tivesse sorte com as sonecas do meu filho, momentos contínuos para me demorar nas páginas. Passando então pela livraria aos 49 do segundo tempo, levei Vivian comigo.
Conheci o livro por indicação da Caroline da Salvo no episódio que participei, e sua animação febril ao mencionar a autora e seu livro, me deixou suficientemente intrigada. Não conhecia, mas o livro de memórias foi eleito o melhor do gênero dos últimos 50 anos pelo The New York Times, e justamente assim, convencida, terminei o livro hiperbolicamente pensando: “esse é o melhor livro que já li”.
Agora passados alguns dias já me sinto diferente, não porque não seja, mas o fato já perdeu a importância. De alguma forma Gornick muda a gente, e depois de ler me sinto menos afeita a sentenciar algo como “o melhor que li”, e me apoio em uma palavra que não conhecia, que marquei ao ler no seu livro e que acho que o descreve bem: portentoso. Afetos Ferozes e Gornick, por se tratar de um livro de memória de não ficção, são portentosos; raros, fora do comum, e o são pra mim justamente por terem uma qualidade que admiro muito, que é de conseguir contar histórias banais de forma luminosa, de descrever situações cotidianas com emoções e detalhes que você não saberia descrever, mas lembra de quando e como se sentiu quando as lê descritas no papel.
Além de costurar com destreza os pequenos elos que unem mães e filhas, também escancara como essa ligação pode ser exaustiva, sufocante, e muitas vezes determinante na construção da visão de como uma mulher pode ou não ser protagonista de sua própria história. Logo nas primeiras páginas Gornick sentencia:
“Meu relacionamento com minha mãe não é bom, e à medida que nossas vidas se acumulam, muitas vezes dá a impressão de piorar. Estamos presas num estreito canal de familiaridade intensa, que nos prende uma à outra. Às vezes se passam anos seguidos de exaustão em que ocorre uma espécie de abrandamento entre nós. Depois a raiva vem de novo à tona, quente e nítida, erótica em seu poder de exigir atenção”.
Diálogos aflitivos com respostas secas seguidas de movimentos físicos violentos, esse é o tom dos sentimentos dentro dessa relação que não passa de forma indiferente em nenhum momento. Gostei de conhecer todas as mulheres da órbita de Vivian, de todas as possibilidades descritas no universo de Gornick do ser mulher e de como viver sua própria vida; a mãe neurótica, judia e socialista, viúva de um grande amor que a definiu e arruinou, das vizinhas do bairro ora amigas, ora apenas grandes fofoqueiras amarguradas, da vizinha jovem e apaixonada, viúva e mãe que subverte o papel de possível ingenuidade e apresenta a sensualidade e até maldade erótica para Vivian, todas trazem encantamento e justificam a observação dela em uma das páginas iniciais do livro: “Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte, lógico - maridos, pais, irmãos - mas só me lembro das mulheres”.
Mesmo quando Gornick descreve seu relacionamento com um homem casado durante 6 anos, ou seu próprio casamento aos 24, em todas as vezes que os homens surgem, eles nunca despertam tanto interesse quanto às descrições da autora sobre as mulheres à volta, ou ela própria. Eles são figurantes meio à construção de uma profunda reflexão acerca dos espaços possíveis ou interditados às mulheres, e suas vidas, vividas ou não. E nesse ponto, como ela e sua mãe sentenciam em uma conversa emblemática ao final do livro: “especialmente das não vividas”.
Me deleitei com a forma de escrever de Gornick. Dei risada, chorei, fiquei encantada com a forma dela descrever personalidades com demonstrações de comportamento simples que você logo consegue visualizar, e ao mesmo tempo são complexas e até contraditórias. Acima de tudo caminhei com ela e sua mãe por uma Nova Iorque que não conheço e que já não existe, e me entreguei à imaginação da vida dessa dupla, refletindo sobre a dupla que formo e formei com a minha própria mãe, e projetando, claro, no papel que posso vir a desempenhar pro meu filho (muito embora tenham aspectos fundamentais da dupla mãe-filha que sei que não terei com meu filho homem).
Postei uma foto da capa do livro e uma amiga comentou que também havia terminado de ler. Disse: “tensa a relação delas, né”, e concluiu “são bem diferentes e parecidas ao mesmo tempo”. E para mim é isso, gostei de Afetos Ferozes e de Gornick porque o tempo o fez uma obra precursora do feminismo, mas alocado em quando foi escrito e por ser um livro de memória, quando lemos nos sentimos roubando um diário intenso e complexo de alguém que não parece estar tentando nos adular ou justificar seu comportamento de qualquer forma. Ao fazer isso, claro, a obra se expande. E ficamos curiosos sobre Vivian porque estamos curiosos sobre nós.
Na última edição da Newsletter da Vivi, ela elencou uma lista de 10 livros escritos por mulheres que ela amou ter lido, com o nome de “sobre elas, sobre nós”, que resume esse momento mais expressivo da literatura - que existe sob outras formas há bastante tempo, mas está em uma onda que perdura já há alguns anos que é a autoficcção. Vivi resume sua própria relação com esse momento primeiramente como mergulho, depois de saturação, e recentemente de redescoberta.
Me sinto alinhada com todo o momento descrito pela Vivi, só pondero que no meu caso vivo o mergulho e a saturação ao mesmo tempo, pois na mesma medida que sinto o modelo esgarçado, quando encontro uma obra - clássica no caso de Gornick, mas que ainda não conhecia – e sinto prazer na leitura, me coloca para pensar e me movimenta à buscar algo que não é só de Vivian descrito por ela, nem meu por me sentir tocada e representada por suas palavras, mas de muitas gerações de mulheres, mães e profissionais e suas vidas vividas, mas como ressaltou Gornick, principalmente sobre as vidas não vividas.
Assim que chegamos em Porto Alegre paramos em uma livraria para matar o tempo - e a energia - do meu filho até embarcamos de volta ao Rio de madrugada. Ainda estava com as palavras de Vivian frescas na memória, e naquele respeito ao último livro muito bom recém acabado, me segurei nas prateleiras, como quando a gente come um pedaço de uma sobremesa que quer muito e estava muito gostosa, e ainda não quer escovar os dentes.
Já saindo me bati com o livro da Tamara Klink, “Nós”, e parei para folhear. Tamara é navegadora, arquiteta e poeta, e eu que não tinha visto seu documentário no Youtube e nem fuçado nas redes, infelizmente não sabia muito mais do que ela ser a filha do Amyr Klink. Já tinha conversado com amigas sobre e passei a segui-la no Instagram onde ela postava relatos intimistas da viagem, porém confesso que não dediquei atenção e foi apenas como forma de me lembrar em algum momento para parar e conhecê-la.
Folheando li que o livro era fruto da sua travessia em solitário pelo Atlântico em 2021 quando tinha 24 anos, o que a fez se tornar a pessoa mais jovem do Brasil a cruzar o Atlântico sozinha. Em plena pandemia, durante três meses ela navegou da França ao Brasil sozinha, tendo feito somente um solitário antes, da Noruega à França. A ideia de velejar nunca me passou pela cabeça, mas ler o relato detalhado de uma mulher que coloca algo na cabeça e desenvolve tamanha obstinação para concretizá-lo me arrebata. O mais bonito é que a descrição da travessia é também um diário de bordo então se, no entanto, não falta poesia, não deixa de contar com um plano detalhado de como colocá-la em prática.
Decidi comprar o livro quando logo nas primeiras páginas li: “desistir é renunciar à chance de partir. À chance de descobrir que a vida pode ser muito diferente do que ela parece ser. Que nosso peito pode aguentar mais trancos, que nossas mãos podem ser mais precisas, que nossa garganta pode projetar mais vozes, que nossos olhos podem ver mais cores do que pensávamos ser possível”.
Quando Gornick e sua mãe enfatizam as vidas não vividas, penso que talvez para sua mãe, uma vida diferente fosse um interdito e uma dificuldade a mais pela época, por ter que movimentar muitas estruturas para poder levar a vida que em algum momento chegou a imaginar poder viver. Há um sentido de perda. Já para ela, a vida não vivida me pega num lugar diferente, de uma vida que não se quer viver por escolha, algo que se pode se renunciar conscientemente e de ficar plena com isso, como no caso dela, de não ter filhos. Há sempre uma perda, claro, mas existe também uma beleza em histórias nas quais independente do que se escolheu, o caminho foi feito conscientemente e de forma instigante, como quem diz a todo tempo que “ainda estou aqui, sim essa é minha escolha e eu a banco”.
Comecei a viagem de férias com Vivian e terminei com Tamara, e me peguei com ternura de uma certa comunhão do que li de uma e vislumbrei em outra, de uma vida de protagonismo não submetida à outra pessoa, e de como quem sonha como se fosse destino.
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Escreva mais, por favor. Obrigado.
confio em todas as indicações de carol e, com seu texto, fiquei com ainda mais vontade de ler afetos ferozes.