O ônibus integração do metrô do Rio pára em estações pré-determinadas. Não adianta a sua pressa, sua conveniência, ele vai parar somente e em todos os pontos pré estabelecidos. Apesar de parecer lógico, não impede, no entanto, de 5, 10 minutos antes dele de fato parar no ponto que todos sabem que ele irá parar, as pessoas começarem a se levantar, pedirem passagem para as outras pessoas já em pé (que provavelmente descerão no primeiro ponto e por isso já são as mais próximas da porta) e causarem um furdunço um tanto quanto desnecessário no corredor do ônibus.
A pressa é a ordem, a nossa tentativa de micro controle em nossas vidas e compromissos impera… e ainda assim, “não adianta estar atento, morre-se”. Essa frase ficou ecoando em segundo plano na minha cabeça por dias depois que li “Não fossem as sílabas do sabado” da Mariana Salomão Carrara, e não pude deixar de me pegar pensando algumas vezes ao longo das atividades mais corriqueiras dos dias que não adianta estar atento ao sinal, não adianta olhar pro relógio e controlar o tempo certo para sair do ônibus e chegar no compromisso, não adianta se antecipar e correr para a porta, morre-se.
Em um instante você pode estar sentado à mesa para jantar, falando sobre o uísque que está tomando, ou a Primeira Guerra mundial e no instante seguinte pode não falar mais, desabar para frente e depois no chão. A vida muda em um instante, um instante normal. Essas são as primeiras palavras que Joan Didion diz que escreveu depois da morte fulminante de seu marido por um enfarte agudo do miocárdio.
Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.
Deve ter sido assim pra alguém na terça-feira da semana passada, assim como provavelmente é para muitas pessoas todos os dias, mas na terça passada alguém se jogou do 7º andar do prédio do outro lado da rua do meu.
A vida acontece o tempo todo, e claro também a morte, e mesmo acreditando naquela frase conhecida do Epicuro (que eu não sabia que era dele até agora, mas tomara que seja porque acabei de jogar no Google, e definitivamente é conhecida) não consigo deixar de pensar o quão inoportuna a morte é:
“Quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos”,
Sei que é uma abordagem bastante materialista, mas ainda assim me acalma em algum lugar. Onde estamos, a morte não pode estar, pois se sua definição é o fim, a existência de matéria e consciência então comprovaria que estamos vivos. Seria a lembrança de que somos finitos então, que nos afligiria, e quando relembrados disso, começamos a temer o momento e suas variáveis, de como e quando acontecerá, numa angústia difícil de suportar no geral, e em particular se quem morreu tirou a própria vida.
Não sei porque fui citar Epicuro - se é que foi ele mesmo, e todo esse lance de matéria, angústia e tudo mais, o que quero dizer é que, convenhamos, ser uma pessoa é difícil pra caramba, e se diferente do acaso, desastre, ou decadência, a morte vem por escolha própria, ficamos especialmente desesperançados e morbidamente curiosos pela pessoa e os porquês da sua decisão. Afinal por mais que o suicídio seja um ato individual, sua origem muitas vezes é social - relembrou uma vozinha do Durkheim para uma Élide de outra vida nas aulas de Sociologia.
Lembro quando minha mãe disse que seu pai, meu avô que sequer conheci, tinha tirado a própria vida quando ela tinha 16 anos. Mesmo impactada, sei que não entendi completamente a dimensão do fato em si pra ela, e fiquei especialmente apegada ao que ela disse depois: “fui caminhar pela praia, e tudo continuava igual. As pessoas seguiam caminhando normalmente, pegando sol, vendendo coisas e bebendo cerveja.. ninguém parecia saber ou se importar que meu mundo havia mudado”. As pessoas seguiam.
Foi a primeira coisa que pensei depois do incidente do camarada do prédio à frente, qual mundo, além do dele, que deixou de existir, que mudou completamente? E como seguir “normalmente” depois? Respondendo os e-mails do trabalho, a vontade era de contar à todos, “sim senhora, você gostaria de uma caixa de kombuchá? claro, pode, mas um sujeito acabou de se tacar do prédio aqui em frente”.
Enfim, qualquer acontecimento assim, faz a gente trazer pro campo do pensar, o impensável, faz com que a gente sinta uma empatia curiosa pelo interdito. Se viver é difícil pra caramba, e não existe garantia de nada depois daqui, como seguir? Concordo um pouco com o Durkheim, e como indivíduo tentante dessa sociedade sempre sinto um quê de fracasso quando sei de alguma notícia assim, como disse minha mãe logo depois de saber do vizinho: “será que a gente podia ter ajudado de alguma forma?”
Não consigo parar de pensar nisso e olhar pra janela dele, que dramaticamente me parece igual à capa do livro da Mariana, e respondendo mentalmente à minha mãe, que falava do vizinho, mas também do seu pai, e de si mesma, não e sim, sempre sim. Não podemos impedir a longo prazo quem realmente quer acabar com a própria vida de se matar, mas se quem pensa nessa possibilidade não quer necessariamente morrer, e sim, sair do estado de sofrimento e dor e se anular, podemos nos colocar no mundo de forma a lembrar aos que estão perto, de que mesmo que a gente queira mais da vida do que há, isso não é motivo para terminar a vida, e sim preencher com quaisquer que sejam os sentidos que queremos dar, mesmo parecendo sem sentido.
Não sei onde queria chegar quando comecei a escrever esse texto, e nem era minha intenção soar tão trágica e triste sem nenhum plot twist bom no final, mas ainda assim tá aqui. Me senti afetada pelo ocorrido, passo, olho para a janela o tempo todo e penso e no fim acredito que a única forma de lidar com os interditos, daquilo que nos escapa, é falando sobre eles, se afetando intimamente.
Ainda lembro vividamente da frase que o cantor Tony Bennet diz sobre a morte da Amy Winehouse no documentário “Amy” de 2015, acho que mais pro final… “a vida te ensina como vivê-la, se você simplesmente vive o suficiente”.
Bom, fiquemos por aqui. Talvez esse seja o plot twist bom no final.
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variações do mesmo tema
Muito papo sobre a morte, né? Não sei se pela pandemia, pelo capitalismo e a finitude de tudo, porém tenho visto realmente muito conteúdo, sobretudo livros, sobre o tema. Nesse sentido indico alguns dos livros que citei acima e já tem certo secto de fãs:
“Não fossem as sílabas do sábado”, da Mariana Salomão Carrara
“O ano do pensamento mágico”, da Joan Didion
E indiretamente “O demônio do meio dia”, do Andrew Solomon, que ainda hoje segue sendo uma referência sobre depressão.
Mencionei o aspecto da morte em casos de suicídio como um querer anular o desespero e a dor, e essa semana terminei de ler, “Meu ano de descanso e relaxamento”, da Ottessa Moshfegh. Como disse uma amiga bem entusiasta do livro, “ela realiza o sonho do depressivo da pior/melhor forma possível”, que é basicamente tentar passar o ano dormindo.
Na “Quatro cinco um” 70, o escritor e poeta angolano Ondjaki traz pequenas crônicas sobre a morte, e ressalta que como na Angola existe muito humor e muita comida associada à morte, pensar nisso, além de pensar em funerais, o faz prever boa comida e boa bebida. Vale a leitura - aliás, da edição como um todo, que vem especial pela proximidade com a Feira do Livro em São Paulo.
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Bateu forte aqui. Penso muito quando acontece algo assim.
E como eu já disse, sempre brilhante teus textos, pontos de vista, dá pra rir e chorar em segundos.
Amei tua reflexão norinha, me fez pensar 😍