a corneta de Órion
“Ser uma pessoa excêntrica é ver o mundo de uma perspectiva completamente diferente, que é tanto provinciana quanto marginal, posta de lado, aos cantos - e, ao mesmo tempo, reveladora, revolucionária”
(“A Corneta”, Leonora Carrignton - Posfácio Olga Tokarczuk, pág 205).
O ano é 1990. Em uma fita caseira você assiste uma senhora com vestido de babados em camadas, cabelo loiro comprido e aquela franja típica dos anos 80. Em pé, perto de uma mesa com algumas outras pessoas, ao que tudo indica vemos uma clássica festa de play. A senhora está ao lado de uma outra ali pelos seus 30 que segura uma criança, quando faz carinho nela e diz: "linda, mas a avó é mais, né?" e ri de forma ampla.
A moça 30+ é minha mãe, a criança lindinha - porém não totalmente, sou eu, e a senhora com o vestido de babados, minha avó, a qual herdei o nome e não a autoestima, infelizmente. Minha avó nasceu no Rio de Janeiro, mas costumava dizer que vinha de Orion - sim, a constelação -, e isso resume bem o tipo de pessoa que ela era e a qual talvez torcesse que eu fosse. Capricorniana e pintora, seu interesse era por organização, o culto ao belo e Xena, a princesa guerreira. Isso é, esteta claro, mas com um quê de insólito.
Sintetizo bem as memórias que tenho dela dizendo que ela e meu avô passaram grande parte da velhice neste culto à Xena empunhando canecas e mais canecas de Redbull misturado com Guaraná numa ode ao hedonismo da boa velhice. Quer dizer, o acordo funcionava, ela gostava de Xena e meu avô gostava dela, e assim ambos me ensinaram muito sobre concessões no casamento.
Quando minha mãe a fazia prometer que viveria mais 50, 100 anos, ela respondia “Deus me livre”. É que apesar de gostar muito de viver - pelo menos durante a maior parte da sua vida - minha avó sempre teve um espírito de contra a corrente do tempo, e caso gozar a vida como ela prezava lhe fosse impossível, não existiria problema em dizer que já bastava. Sim, saber dizer quando era suficiente também era uma das suas aptidões, mesmo que pra isso às vezes ela batesse à mesa.
A energia dela era uma mistura de closet gigante com coletes de pelo falso de macaco com ar-condicionado ligado e cigarro 24 horas por dia. Eu achava o máximo a certeza com a qual ela dizia que “a moda sempre volta, Élide” diante da minha incredulidade perante algumas de suas peças de roupa. Eu não entendia bem na época, mas meu irmão com sua sapiência estética definiu no ponto quando diante de um dos seus looks memoráveis: “gravata de paetê é um gesto de autocuidado”.
Minha avó cuidava muito de si e do seu mundo interno – e por muito privilégio de classe, claro, tinha muitas outras pessoas que cuidavam do externo. Apesar de saber que dependendo do referencial ela poderia ser vista como uma madame, aqui me apego ao interno e do que certas atitudes dela representavam para mim como avó, sendo a principal a da urgência de se conhecer e colocar a si mesmo como centro da sua própria vida.
Li recentemente “A Corneta” da Leonora Carrington e relembrei alguns aspectos da personalidade da minha avó com melancolia e encantamento enormes. A cada “ode à excentricidade” expressos no livro, sentia um pouco mais dessas memórias vivas, me rondando. Algumas pessoas têm isso, elas estão apenas vivendo sua vida e a gente pára pra assistir, como se tivessem uma órbita própria capaz de te sugar e ainda pedirmo mais.
Ao mesmo tempo me senti triste em reconhecer que o lugar que a gente reserva para essa classe de pessoas, o genérico grupo “dos mais velhos”,vão rareando conforme o tempo e que o caminho dito como “natural” é ser cada mais marginalizado e descreditado. Por isso gostei tanto do fato da personagem principal ser uma mulher idosa de 92 anos, escancarou em mim resistências que não estavam totalmente confrontadas, e ainda que o modus operandi da sociedade seja sabido, não pensar nos velhos como produtores de existências, de universos cheios vida, me doeu profundamente.
No prefácio do livro escrito pela ganhadora do Nobel, Olga Tokarczuk, destaco um trecho grifado que sintetiza bem a energia da personagem central Marian Letherby – e tomo a liberdade de incluir a minha falecida avó no balaio: “a excentricidade se coloca como uma rebelião espontânea e alegre contra tudo o que é estabelecido e considerado normal e auto vidente. É um desafio lançado diante do conformismo e da hipocrisia”.
Pois bem, no livro a personagem nonagenária vegetariana e amante dos gatos, desencadeia uma peripécia apocalíptica quando sua família decide coloca-la em um lar de idosos. Este fato só chega ao seu conhecimento porque sua melhor amiga Carmella, peculiar, conspiratória e hilária, a presenteia com uma corneta auditiva.
De um cotidiano perene de uma idosa, somos convidados à uma aventura que passa por mitologias, referências ao Cristianismo, Santo Graal, a Deusa Vênus e travestis líderes de movimentos, confirmando que se a personagem principal está com dificuldades de audição, um pouco manca e sem paciência para as normas vigentes, ainda esbanja energia. O livro então subverte a lógica da ordem patriarcal ao trazer uma velha surda para o centro da narrativa, e o resultado é uma obra inesperada, divertida e surrealmente feminista:
“É essencial à personagem uma qualidade que ela compartilha com o romance como um todo: a excentricidade (a excentricidade é um dos modos permitidos a uma mulher idosa quando ela não está desempenhando o papel de avó bondosa). De fato, colocar uma velha surda no papel de narradora, de heroína e de espírito reinante, e preencher o livro com um grupo de senhoras estranhas, indica desde o início que esta história será um caso de excentricidade radical” (pág. 205).
Minha avó não era uma avó bondosa estilo “Dona Benta”, não liderou nenhuma revolta feminista surrealmente apocalíptica, mas provocava em mim uma constante reflexão interna do “precisa ser assim?” – incômoda no melhor sentido.
Você precisa se vestir de jeans e camiseta branca? Por que não um colete de pelo falso de macacos no Rio de Janeiro? Você precisa ser advogada? Por que não pintora? Você é terrestre, por que não de Orion? Claro que hoje me sinto um tanto deslocada em enaltecer minha avó, sabendo que muita da sua excentricidade teve espaço e foi valorizada como tal por ela ser uma mulher branca, na época com grana, que podia de alguma forma “se dar à esse luxo” e não ser taxada de louca (o que por um tempo ela foi, mas essa é outra história), mas ainda assim, mesmo com o desconforto não posso apagar em mim o que veio dela.
Quando minha avó morreu eu tive a – refletindo agora – mórbida ideia de escrever uma carta e colocar no caixão. Agradeci por todas essas coisas que descrevi, e me desculpei porque não ter valorizado em vida a força que elas tiveram ao forjar minha identidade. No fim não esqueci de frisar – claro – que se tivesse uma vida ou qualquer coisa após a morte eu acreditava nela de antemão e que não precisava voltar pra me contar. Sei que ela acharia graça, assim como sei que deve ter ficado frustrada, pois vivia dizendo que voltaria para puxar nosso pé.
No posfácio de “A Corneta”, Olga ressalta que a linguagem irreverente da obra, indomável e por assim dizer selvagem é julgada como kitsch, pois é dentro do aspecto incompreensível do kitsch que volta e meia as mulheres são colocadas, como algo sem gosto apurado. Pois bem, diz Olga, que seja: “Kitsch é o nosso oceano. Todos aqueles processos cíclicos, menstruações, e enxaquecas recorrentes. Baboseiras, ervas curativas, e confiança infantil no poder da natureza [….] os romances, a “literatura feminina”, a “emoção”, a acusação de fragilidade mental que tem sido atribuída a nós por séculos” (pág. 209). Pois bem, que seja. Olga, Marian, Leonora, minha avó e tantas mais são mulheres, velhas, pintoras, mães e deusas irônicas subversivas que fazem da vida um carnaval. Que do incompreensível venha ser nosso oceano.
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