Quando ainda nem namorávamos, meu marido me contou uma história que ficou marcada na minha memória. Naquela tateada ansiosa pelo escuro, de quando estamos conhecendo alguém, torcendo para que, no próximo passo cego, a gente se esbarre, ele me falou sobre a primeira vez que ouviu Nirvana — a banda que eu sabia que havia sido sua paixão adolescente, e que, ainda naquele momento, ocupava um lugar cativo no seu coração. Quando o disco Nevermind completou 30 anos de lançamento, ele escreveu um texto sobre isso no Instagram. Em resumo, em algum momento de 1998, sua irmã mais velha fez uma social em casa, e ele se deparou com os discos levados pelos amigos dela e o aparelho de som 3 em 1 do seu pai.
No frenesi da curiosidade, pegou um fone de ouvido e colocou o disco do bebê na piscina pra tocar. Lembro dele descrever a sensação de prazer e angústia ao ouvir algo tão estimulante e diferente do que ele esperava ou conhecia. Mesmo sem entender o que as músicas falavam, ele percebia a raiva intercalada com a calma — uma sensação que provocou a curiosidade de saber mais, querer mais, e, independente disso, de reconhecer ali que estava vivendo um dos momentos transformadores de sua vida. Imagina saciar essa curiosidade em 1998, tempos de ritmo tão diferente no que diz respeito à informação. Só lhe restou então aproveitar o que tinha em mãos, repetidamente, até que - aos poucos, fosse construindo dali em diante um novo caminho. Enfim, um apaixonamento.
De alguma forma, essa primeira experiência deu o tom de como ele se colocou no mundo. O amor pela música, as mulheres que ele gostou, as roupas que usou, os amigos que fez e como gastou seu dinheiro (nesse quesito, posso comprovar, pela quantidade de instrumentos que temos em casa). E ainda que essa experiência não tenha definido precisamente, criou um invólucro para as próximas que viriam.
Suponho que, ao ler isso, você seja levado involuntariamente por uma — ou várias —, lembranças de apaixonamento. O querer reter o momento naquela fatia de tempo, a noção clara de que, ainda que precoce, o vivido já transformava sua vida. Enfim, paixão, sabe?
Uma das minhas memórias bem marcadas me leva a uma tarde qualquer, na qual uma Elide adolescente, e muito provavelmente entediada com a própria existência, se deparou com uma música do AC/DC, a banda australiana estridente dos irmãos Young. Não lembro qual era, nem como encontrei ou ouvi, mas, como toda memória de paixão, lembro do que ela me fez sentir - e do que seguiu me fazendo sentir conforme crescia e reouvia. Tivemos momentos de hiato, com retomadas de mais ou menos fervor, mas por ter sido uma das primeiras, nunca a abandonei completamente. Ela foi trilha de romances (por mais insólito que pareça, considerando o caráter das músicas), me acompanhou em noitadas memoráveis na boate de rock que fui habitué durante a faculdade, me fez chorar — já adulta — quando Malcolm Young morreu, e, como boa paixão, não me prometeu amor eterno. Quando tentei comprar ingresso para um show que teria no Brasil, me frustrou, esgotando em segundos.
Essa paixão nunca concretizada, vivida apenas na expectativa e projeção foi a maior das minhas paixões platônicas. E isso explica o sentimento presente quando, em 2012, eu estava sentada em um bar com meu amigo Raphael, que, entre outros atributos, era reconhecido por sempre conseguir ingressos para shows muito concorridos. Nessa conversa, ele me confidenciou que o único ingresso que não havia conseguido foi o do AC/DC no Morumbi, em 2009.
Fizemos um acordo: se, depois da experiência frustrada de 2009, ele já havia prometido nunca mais deixar de ir a um show de sua banda favorita, eu o fiz prometer, naquele bar em 2012, que, se tivesse outro show do AC/DC, fosse onde fosse, ele compraria meu ingresso.
Estamos em 2024, eu com 35 anos, marido, filho, empresa, vivendo no Rio de Janeiro, e esse meu amigo vivendo em Braunschweig, na Alemanha, quando os caras anunciam uma turnê — com toda pinta de ser internacional, mas que, no fim das contas, se limitou à Europa.
Tudo em mim dizia que era absurdo cogitar. A data estava muito próxima, o euro estava congelado a mais de 6 reais há meses, eu não sabia se era permitido levar crianças para o show, e, caso não fosse, muito menos com quem deixaria meu filho — isso sem contar os custos básicos. Mesmo assim, em um lapso de muito café e tédio no trabalho, resolvi entrar no site geral de vendas e checar se ainda havia ingressos. Havia, em Hannover, Alemanha. Escrevi para o Raphael e perguntei se ele já tinha ingresso para o show. Ele me respondeu que sim, e que, se eu fosse até lá, também teria um para mim. Foi questão de segundos — e de um cartão que, felizmente, tinha limite naquele momento. Mas, na mesma hora, entrei no site e comprei o ingresso para o Edu, sem nenhuma das questões anteriores respondidas.
Vou adiantar e dizer que deu tudo certo. E, por certo, digo que fomos para Hannover, meu melhor amigo Filipe saiu de Lisboa, onde mora, e foi até Hannover passar uns dias conosco — ficando de babá para o Martin. Eu, então, assisti ao show da minha banda favorita, com marido e amigos, enquanto em todo momento não acreditava que, de fato, estava acontecendo.
Não vou entrar no mérito de todos os pormenores de realizar um sonho, mas vou entrar no mérito da paixão. No frio na barriga que senti nos minutos que antecederam o show, conjecturando todos os cenários que poderiam dar errado e estragar meu plano. Na certeza, já mais próximo do horário do show, de que estava tudo bem e daria certo, que eu podia relaxar. Que sim, era improvável, mas, enfim, eu estava ali, a Elide adulta e adolescente vivendo enfim uma paixão platônica que já era muito bem resolvida - ou nem tanto.
Vi muitas vezes o show inteiro deles no estádio do River Plate (meu preferido) no YouTube. Tinha uma certa expectativa imagética da experiência como um todo, e digo, mesmo sendo graduada em amores irrealizáveis, que obviamente nada é superior à experiência de concretizar em corpo presente um sonho que nos acompanha por tantos anos e que já estava guardado no baú do nunca. Brian Johnson, o vocalista que enfrenta uma surdez crescente nos últimos anos, entregou todas as músicas estridentes e penetrantes — contrariando o que vinham dizendo dele nos últimos shows. O sino de Hells Bells desceu e badalou, Angus Young e sua Gibson valsaram juntos em uma perna só, e, durante todo o show, eu tinha a certeza de que estava vivendo um conto onírico.
A questão é - sobre a paixão e sobre realizar um sonho, eu já tinha abandonado a certa inocência que se precisa ter pra sustentá-lo, já tinha abandonado a minha própria capacidade de assumir que ele ainda me sensibilizava muito. Com isso, também acabei abandonando em alguma medida a minha capacidade de me emocionar, de sentir, e ao chegar lá e enfim viver, sinto que recuperei também um pouco da capacidade que eu tinha quando adolescente de me espantar de novo, e profundamente.
Sentei em um café para terminar esse texto, que, desde que voltei de viagem em agosto, não saía de mim. Quando o garçom viu minha ecobag do AC/DC, disse: “Uau, AC/DC, gosto muito.” Respondi que também, e que era minha banda favorita. Ele comentou que ficou triste, porque não havia conseguido vê-los em 2009 no Morumbi, e que jurava que eles viriam ao Brasil esse ano... Eu saboreei esse momento e respondi, sem nenhuma afetação, mas totalmente por sentimento, que tinha ido: a Elide de 35 anos e a Elide de 15, ridículas e apaixonadas - e que tinha sido perfeito.






eu tenho muita paixão por cavalos. a carolina de 15 e a de 35 anos sonham em conseguir um dia ter um, nem sei se pra andar, ou se só pra observar!
Viva o sonho, parabéns por ter visto sua banda favorita e parabéns pelo texto