De acordo com uma matéria da “Eu, atleta” da globo.com, a lambaeróbica nasceu na década de 80 na Bahia, e ficou muito conhecida por, na mistura dos passos da lambada com movimentos típicos das aulas de aeróbica, divertir e queimar calorias na mesma intensidade. Pois bem, a Élide de 2003 precisava muito dessa combinação de diversão e queima de calorias, e então, mesmo com seu expressivo sobrepeso da adolescência e suas roupas pretas grunge, tomou coragem e se matriculou nas aulas de lambaeróbica da academia que a mãe se exercitava.
Vejam, na minha adolescência o discurso body positive não existia - ou se existia, ainda me era muito pouco acessível - e a única referência que eu tinha de conhecimento para além da Barsa do meu pai, era a minha tão invejada assinatura da revista Capricho e o dia a dia na escola que frequentava. Para a Capricho da época, Priscila Fantin no auge da sua carreira como jovem atriz, foi capa com as calças arriadas, de calcinha, acompanhada de uma citação embaixo: “sou feliz com meu corpo”, com um adendo da revista: “longe de ser magrinha, Priscila Fantin é contra a ditadura do padrão de beleza”. Pois é, esse era o discurso contracorrente sobre corpo da época, no qual a Priscila Fantin, nessa capa, estaria longe de ser magra e enfatizava ser contra a ditadura do padrão de beleza.
Eu amava a revista e lembro o quanto amei essa capa - na época icônica, assim como tantas outras que forjaram minha adolescência. Mas nossas cabeças mudam, e hoje com o olhar crítico mais apurado, principalmente para as questões do corpo que eram mais ou menos normalizadas naquele período, é com inegável incômodo que penso o quanto a revista foi gatilho para a reprodução de uma visão um tanto disforme da minha realidade.
Enfim, esse texto não é sobre isso. Esse texto é sobre uma certa coragem que aquela Élide, então absorvida naquela lógica Capricho, teve para se desapegar da ideia que fazia de si, e se matricular na aula de lambaeróbica. Porque, quando eu digo sobrepeso, quero dizer que pesava ali na casa dos 100kg, e quando digo grunge, quero dizer que uma vez, munida das minhas melhores vestimentas afrontosamente desleixadas, duas senhorinhas em Ipanema ao me avistarem fizeram sinal da cruz. Digamos, então, que eu não seria convidada para a Capricho para falar sobre beleza fora do padrão na estética Priscila Fantin - e definitivamente não me convidariam para integrar o “É o Tchan”.
No entanto reconheço que poderia ter sido uma adolescente de personalidade forte, autoestima inabalável e zero preocupação com o olhar alheio - conheci algumas poucas na escola e nos meios que circulava, que lembro com admiração, mas não era o caso. Minha autoestima era a epítome do permeável pelo olhar do outro - assim como tantas adolescentes leitoras de capricho, e ainda assim aquela Élide pegou seu discman, pausou os berros do Kurt Cobain cantando “Where Did You Sleep Last Night” no maravilhoso CD do MTV Unplugged e colocou uma roupa de ginástica pra requebrar ao som da Bahia dos Anos 80. Que desprendimento, que entrega! E aqui enfatizo que quando digo coragem não tinha necessariamente a ver com meu peso, ou o estilão dark, e sim com o sentimento constante e forte de inadequação que deteve minha curiosidade em experimentar o diferente pelo medo de ser julgada ou ridicularizada.
E bom, spoiler, minha carreira como dançarina foi tão meteórica que durou um piscar de olhos, mas se enquanto estive lá ninguém obviamente se importou tanto para me sacanear por qualquer motivo, fora dali obviamente tiveram desencontros que pensando hoje, chego à conclusão que se o sonho fosse ser dançarina ou o que quer que fosse, eu simplesmente deveria ter tentado, porque ninguém está verdadeiramente ligando tanto assim pra gente e quando estão, perdem pouco tempo fazendo barulho contra, porque estão mais preocupados com suas próprias lambaeróbicas.
Não era, no entanto, minha vontade. Além de ser péssima, descobri que não gostava tanto de dançar e os movimentos realmente eram desafiadores para o meu preparo, mas fiquei refletindo esses últimos dias sobre em que momento parei de me permitir apenas tentar - o que quer que fosse, simplesmente para “ver qual era”, ou simplesmente porque estamos aqui vagando de forma aleatória no mundo e temos que criar sentidos variados para essa experiência. Claro, a gente vai ficando mais velho, vai sendo moldado pela sociedade capitalista de maneira inevitável e conforme incorporamos as ideias de tempo, produtividade e performance, se não estivermos afiados com ideia do que somos e/ou queremos ser (alô terapia), vamos mesmo perdendo esse quê criativo, que muitas vezes surge quando largamos a rotina de musculação na Smart Fit e nos matriculamos sem um porquê claro na aula de zumba.
Sim, zumba. Já adulta, uns 3 anos atrás quando morava em Singapura, na academia que frequentava, o auge do meu dia consistia em observar a aula de “Zumba Fitness” oferecida lá. A sala da aula era toda de vidro, o que permitia que eu visse, ali do meu supino entediante, todo aquele secto variado de pessoas (porém majoritariamente senhorinhas asiáticas) requebrando ao som dos ritmos da Colômbia. Elas sempre pareciam estar se divertindo horrores e muito suadas, e claro que eu ficava me provocando dizendo internamente “vai lá, faz, vai ser divertido” absolutamente todas as vezes que via. À essa altura do texto você já deduziu que durante meus 2 anos frequentando essa academia não fiz nenhuma aula de zumba (embora tenha feito de hot yoga grávida e quase passei mal), e hoje digo com segurança que certamente teria amado e me arrependo.
Aquela Élide adolescente sentia sim muita inadequação, mas por ter sido menos exposta “à vida mentirosa dos adultos” também se levava muito menos à sério, e consequentemente se divertia e permitia muito mais, ao passo que hoje, preciso quase fazer uma sessão de terapia e consultar 2 ou 3 amigas que me conhecem bem e são parceiras, para legitimar algo que eu quero simplesmente tentar.
Tenho lido bastante a newsletter da Viviane da Costa, “Vai sem tempo mesmo”, e confesso que o que sou mais fã, dentre todos os textos ótimos e deliciosos, é o nome, porque soa como um mantra, um estilo de vida a ser alcançado que é simplesmente de se colocar em movimento. No livro Torto Arado do Itamar Vieira, tem um trecho que me lembro com frequência, na página 85, que diz: “Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida”. Sim, sei que Itamar não estava falando de movimento literal principalmente associado à lambaeróbica, mas se de Jimi Hendrix e o seu are you experienced?, ao conceito de experiência vivida de Walter Benjamin, ressaltamos à preciosidade das vivências particulares de cada um como fonte de vida – e solidão – por que não simplesmente experimentar?
Sem tempo, com medo, sem saber dançar ou com as roupas inapropriadas, mas com quem você é e o que sabe no momento, já que na pior da maioria das hipóteses você vai suar, talvez se divertir e poder contar essa história no futuro.
// postscriptum
Esse texto ficou com cara de autoajuda? A ideia era precisamente essa, e aproveito o gancho pra ajudar ainda mais e dizer que o título foi em referência à um filme de 1995 que assisti quando criança - e adoro: “Para Wong Foo, Obrigada por Tudo!”, onde Patrick Swayze, Wesley Snipes e John Leguizamo são drag queens que viajam pelo interior dos Estados Unidos rumo à uma competição nacional de drags, quando o carro quebra e são obrigadas à matar tempo em uma cidadezinha de interior.
Lembro que tinha visto Blade (aquele que o Wesley Snipes era um caçador de vampiros -meio humano, meio vampiro) até antes de Wong Foo, e na minha cabeça de criança a experiência foi de puro maravilhamento conceber tantas possibilidades em um mesmo homem.
a Élide da lambaeróbica me lembrou muito a Vivi do spinning que também colecionava Capricho e que se levava bem menos a sério. amei esse texto, me identifiquei muito, do início ao fim, e fiquei honradíssima com a citação e com a constatação de que tem mais gente por aí que pensa o viver um cadinho como eu, sem tempo mesmo, mas vivendo.
Que inspiração ler esse texto, e que saudade que bateu da Élide grunge!
Esses dias do nada acordei cedinho e naquele momento de ficar zapeando no celular antes de dormir de novo, comprei um workshop de cerâmica. Vamos tentando, sem tempo mesmo 🫶🏽